domingo, 11 de outubro de 2009

Vigiar e Rezar: ferramentas para evolução das eras.

Fazer descobertas é um dos passatempos mais importantes que existe. Para sua boa prática, requer muita destreza em dois principais aspectos:
  • Curiosidade - que surgiu no ser humano logo após o processo evolutivo ter nos dado a visão;
  • Sorte - que foi inventado pelo homem na busca incessante de ganhar a vida de forma fácil.
Não acredito que foi a fome responsável em fazer o homem descobrir o que existe dentro da laranja. A fome pode até ser considerada o estopim ou uma sustentável motivação, mas quem coordenou todo o processo foi a sede pelo conhecimento integral das coisas que podemos ver e sentir - que geram curiosidade. Ou seja, para a teoria virar tese, há caminhos indispensáveis a serem trilhados.
  • Curiosidade, que lhe permite vigiar o alheio. E como todo bom vigia, é indispensável o sentido da visão bastante desenvolvida, que é arte da observação.;
  • Sorte, um conjunto de eventos para favorecer 100% no sucesso das descobertas;
Para atribuir veracidade a essa prosa, contarei a história da descoberta da Penicilina - primeiro medicamento que iniciou a Era dos Antibióticos na indústria médica ocidental. Se existem dois substantivos que perseguem o Dr. Alexander Flaming - o famoso inventor - são:
  • Acaso - nome bonito que dão para sorte;
  • Observação - é a filhinha mais velha da curiosidade;
Já dizia Pasteur, o acaso só favorece aos espíritos preparados e não prescinde da observação.
Depois de exaustivas lutas na pesquisa com estafilococo, cansou-se de não ter observado nada de interessante e, como estava pra chegar uma frente fria terrível em Londres, arrumou as malas e deu-se férias. Na verdade, um cientista verdadeiramente empolgado, com muita fome e sede de chegar rapidamente nos resultados, jamais tira férias, pois seria um completo descaso consigo.

Ainda na metáfora inicial, entenda da seguinte forma, se a fome do cientista - simbolizando qualquer tipo de motivação - para achar o gomo da laranja - simbolizando qualquer descoberta - for pouca, tudo fará com que os resultados fiquem bem distantes. Ele só não para com as pesquisas por causa do 'maldito interesse em descascar a laranja' - simbolizando a curiosidade.

Flaming era um cientista, e cientista é uma raça humana que se distingue das demais pelo seu grandioso senso de curiosidade. As vezes ele fica curioso e nem sabe com o que. Isto até o dia em que a "Sorte" trazer um motivo instigante. Uma coisa leva a outra.
"O curioso vive observando > a sorte dá pistas > a curiosidade aumenta > a sorte mexe mais ainda os pausinhos > a observação e a atenção aos detalhes ficam mais intensas ainda > ... > a maçã cai da árvore > EURECA!"
Enquanto a sorte dava as costas para a personagem, a 'não-fome' de Flaming fomentava seu total descaso com a atual e nada produtiva experiência. O desalento era tanto que simplesmente ele esqueceu umas placas cheia de culturas de estafilococo em cima da bancada do laboratório. Apenas as viu largadas quando voltou das férias. Estavam todas mofadas. Para leigos, estafilococo pertence ao grupo de microorganismo chamados de bactéria e as pesquisas com fungos, que pertence a outro grupo distinto de microorganismos, eram feitas no andar de baixo. Desde aquela época, como até hoje, numa pesquisa séria, é inconcebível este tipo de contaminação: a entrada de interferentes através do descuido em manter o laboratório mais impenetrável possível, ou seja, é de suma importância um laboratório não sofrer invasões externas que podem comprometer o andamento das pesquisas.

Logo depois de voltar a trabalhar, Flaming estava prestes a colocar as tais placas podres esquecidas em cima da bancada para serem esterilizadas quando, por sorte - e põe sorte nisto - Flaming recebeu uma visitinha de um 'amigo', o Dr. Pryce, e com isso, ele deixou pra depois a esterilização das mesmas. Tudo para dar atenção ao amigo, que também é pesquisador. Flaming, pra mostrar que não estava o tempo todo ocioso e desocupado, foi mostrar o "sucesso" que obtinha em sua "interessante pesquisa" - o hábito de mascarar a realidade é praticado milenarmente. Talvez não tinha muita coisa interessante pra mostrar de fato, tanto que apelou para as placas morfadas, prontas para serem descartadas.

- E então Dr. Pryce, como vai? Quanto tempo!
- Sim! Se eu não resolvo aparecer, nunca vamos nos encontrar, não é Flaming?
- Mas é que estou super empolgado com as pesquisas. E por falar nisto, olha que interessante estas placas aqui! Todas morfadas!
- Que incrível!
- Inusitadíssimo!
- Acontece a mesma coisa, toda semana, com os pães de forma que sobram lá em casa!
- ...
- ...

Neste descompasso, ambos observaram halos transparentes que os fungos formavam na espessa colônia de estafilococo - o Staphylococus aureus é uma das espécies mais perigosas e sua colônia forma uma pasta amarelo ouro, que justifica ser chamada de aureus, que é ouro em latim.

Demonstração Didática (a figura é uma demonstração prática pra vocês entenderem):


A curiosidade foi tanta que descobriram que os fungos (chamaram depois de Penicillium) podem produzir uma substância peculiar, e chamaram de Penicilina pela natureza do fungo - a ciência é ironicamente previsível, capaz de matar os estafilococos. A penicilina passou a ser produzida em escala industrial durante a Segunda Grande Guerra e com isso, a humanidade evoluiu para a Era dos Antibióticos. Hoje, vivenciamos a Era do Combate do Uso Indiscriminado do Antibiótico para combater a resistência microbiana, que foi uma outra descoberta e outro assunto intermediado pela sorte, que também fatalmente acelera o processo de descobertas.

Não sei quantas camadas a vida nos apresenta, mas sabe-se que cada vez que procuramos motivação para descascar esta puta laranja super complexa, novas Eras vão aparecer. Foi dito inicialmente que fazer descobertas é um passatempo importante e isto não quer dizer que tudo que é importante seja sinônimo de "boa notícia". As novas Eras consomem a vida de tal forma que o ser humano precisa constantemente se adaptar. E "se adaptar", sim, é sinônimo de problema.

Em resumo, nem sempre vamos saber se o "gomo da laranja", que se esconde por dentro da casca, será sempre saboroso, mas se não for, fique com a dica de minha amiga Ângela:
"Ainda que esteja azeda podemos fazer o melhor suco, adoçando é claro!" Angela Amado


TARCÍSIO MARCHIORI JUNIOR